João Batista do Lago
(Ficção)
(Ficção)
Esta é uma revelação que guardei por muitos anos, e que dou, aqui e agora, a conhecer a todo mundo – quem o quiser saber. Não lhes peço credibilidade quaisquer, pois credibilidade não se constrói. Ela é um dos enigmas da filosofia pura: não está antes e nem depois. Ela só existe no aqui e agora. Mas, se chegastes até aqui – aviso-te: ainda tens tempo suficiente para usar da tua autonomia e abandonar-me, a mim e a este relato, antes que te o seja caro, que te o envolvas definitivamente na sua trama – é porque desejas saber realmente como aconteceu o enterro de Nietzsche.
Antes de tudo devo matar essa tua curiosidade. Naturalmente desejas saber quem sou. Não quero deixar a impressão de um ser grosseiro, mal educado, irreverente, prepotente, ou qualquer outro adjetivo que, porventura, me queiras administrar. Mas há de convir comigo: não estou aqui para dar conta de minha vida. Ela tem muito pouco interesse para ti. Ela não representa o que estás a pensar neste exato instante: “Ecce homo deve ser mais louco que o próprio Nietzsche”. Não é isso que pensas neste momento? Sinceramente, para mim pouco se me dá o teu pensamento... Ele é só um pensamento (há muitos outros pensamentos não seguidos, por exemplo, e por isso mesmo adormecidos). E posso inclusive dizer-te que ele não é real – é pura e tão-somente uma representação do real no campo da irrealidade presente em tua memória inestética. Concordas comigo? Ou não? Se não concordas, por quê então acreditas que Nietsche inferiu que Deus está morto? Acreditas que Deus está morto? Mas, se concordas comigo, então, quem está morto és tu. Concordas? Assim sendo tu não existes. Tu não és real. Correto? Bem te avisei: já não mais tens o direito de deixar de me acompanhar neste relato, pois dele tu serás discípulo e apóstolo – já te enfiastes até o pescoço, faltando, apenas, dar-me a tua cabeça para pensá-la comigo. Ou então serás, apenas, túmulo e morte. Concordas? Duvidas? Mas com o que exatamente concordas? E do que estás a discordar? [...] Ah, estás pensando no Deus que Nietzsche disse está morto... “Quem matou Deus?” – É este o teu pensamento agora? Para resolver esta tua curiosidade tu precisas, primeiramente, resolver a questão anterior à morte de Deus. Proponho-te a seguir que te faças uma pergunta: quando Deus nasceu? De quem ele nasceu? Onde Deus nasceu? Não vale responder com dogmatismos religiosos. Isso é senso comum. E o senso comum é o não-pensamento. Esta resposta merece o teu pensamento, portanto, pergunto-te: o que pensas aqui e agora? Veja bem: aqui e agora, neste instante... O que pensas? [...] Pronto, dei-te a ti e ao teu pensamento os tempos necessários. Digo-te, agora, o seguinte: toma-a (a resposta) e guarda-a bem dentro do teu pensamento. Mas antes precisas responder se o pensamento existe, como te propus lá atrás... Nunca esqueças disso. Uma coisa tem a ver com a outra. Todas se interpenetram. Ah, mais uma coisa: foge imediatamente dessa tua dualidade. A dualidade é uma falsa representação da realidade. A dualidade não é Realismo. Pensar pela ótica da dualidade implica reduzir a vida simplesmente à causa e efeito. E a vida não é só isso: causa “versus” efeito. Ou é? Mas, se não é, então, o que é a vida? E se ela é, então, o que ela é? O que diz o teu pensamento a este respeito? Dá-me, a mim, aqui e agora, o teu pensamento para junto pensarmos. Pensemos: se a vida não é, o Homem não é. Deus não é. O Ser não É... Mas a vida sendo o homem não é, Deus não é, e o Ser não É. Assim não sendo tudo é representação. Concordas? Não concordas? Então toma este poema e pensa-o:
Descaminho
Há uma pedra no caminho;
no caminho há um homem.
Há um homem no caminho;
no caminho há uma pedra.
Há um caminho sem uma pedra;
no caminho não há um homem.
Há um caminho sem um homem;
no caminho não há uma pedra.
Há uma pedra livre porque o caminho está livre do homem.
Há um homem livre porque o caminho está livre da pedra.
Há um caminho livre porque o caminho está sem uma pedra.
Há um caminho livre porque o caminho está sem um homem.
[...]
Há um caminho livre por quê não há nem homem, nem pedra!
E agora, que me dizes tu? Qual caminho tu tomará como teu? O caminho livre do homem? O caminho livre da pedra? Ou o caminho (simplesmente) livre – sem nem um homem, sem nem uma pedra? Mas a todas estas questões quero inserir mais uma: - Qual caminho tomou Nietzsche quando inferiu a morte de Deus? Qual a realidade de Deus, em que Realismo Deus existe? Ou Deus é só Romantismo? E mais uma pergunta: - Por quê inferir apenas a morte de Deus? E o Diabo?... Existe? Continua vivo? Ou também foi morto? Por quem? E se ambos existem – ou existiram –, quais caminhos tomaram como seus? Vê o que nos diz o poeta:
A Maçã do Éden
o cadáver da vida
floresceu entre os parreirais
o diabo lho fizera prece
deus e o diabo beberam
do mesmo vinho dionisíaco
hoje apolínicos em suas dimensões
ambos reclamam Adão e Eva
E aí, que me respondes tu, diante dessa celeuma que deblatera dentro do teu espírito? Êpa... mas que é isto, o Espírito? De que matéria constitui-se o Espírito? Quem te deu esse espírito? Se o tens, o que és então: matéria ou espírito? E se te condensas nos dois, quem é o desencadeador da Razão? E a Razão o que é senão a realidade da matéria? Se a Razão é, pois, a realidade da matéria, o espírito não tem razão de Ser? Concordas? [...] Ah, resolvestes dar o ar da graça... Discordas do meu pensamento. Então discutamos o teu pensamento. Presumes que o Espírito é Deus. Correto? Pois bem... Se o espírito é Deus, tu és Deus. Concordas? Ah, não concordas! Neste caso nem tu, nem Deus, existem. Concordas comigo que tu não É, assim como Deus não É? Discordas. “Deus é o Princípio e o Fim” – dizes-me tu. Consideras um Fim em Deus, então, dás razão a Nietzsche... – “Deus está morto”. Neste caso, assim como Nietzsche, tu aceitas como Verdade a preexistência de Deus... Correto? Ah, Deus está fora de si? Onde? [...] Bem sei estás cansado e eu também, contudo, vejamos até onde chegamos: à Verdade. Tomas o meu pensamento por Verdade? Se assim o consideras, elejo-te, então, meu discípulo e apóstolo. Se não me tomas por verdadeiro, então qual é a tua verdade? Qual caminho tu seguirás após nossa conversa? Qual pensamento será o teu desencadeador de agora por diante? Terás um pensamento próprio, ou continuarás refém de outros pensamentos?
[...]
Ah, ia me esquecendo: no dia do enterro de Nietzsche postei-me ao lado esquerdo do caixão. Era madrugada. Entre 2 e 3 horas. Somente eu estava ao lado do caixão. Ele olhou-me. Sorriu faceirosamente. Com um estupendo gozo eterno e me confidenciou:
- Vocês são todos loucos, mas dou-te, somente a ti, meu caro Atsitabj Ogal, este meu testamento: não fui eu quem matou Deus... (cochichando) ...nem sei se Deus morreu... (piscou o olho para mim e acenando com a cabeça pediu que eu chegasse mais perto) ...foi a humanidade... o homem... o humano... foram as religiões que mataram Deus. Ah, quanto ao Diabo, nem se preocupem, ele não fará tanto mal assim como pregam por aí... Será que me compreenderam? Dionísio contra o crucificado? (depois desta frase desfaleceu).
[...]
Depois do enterro, no dia seguinte, Lou Salomé, que tomava café ao meu lado, confidenciou:
- Nietzsche queria ser Deus...
Antes de tudo devo matar essa tua curiosidade. Naturalmente desejas saber quem sou. Não quero deixar a impressão de um ser grosseiro, mal educado, irreverente, prepotente, ou qualquer outro adjetivo que, porventura, me queiras administrar. Mas há de convir comigo: não estou aqui para dar conta de minha vida. Ela tem muito pouco interesse para ti. Ela não representa o que estás a pensar neste exato instante: “Ecce homo deve ser mais louco que o próprio Nietzsche”. Não é isso que pensas neste momento? Sinceramente, para mim pouco se me dá o teu pensamento... Ele é só um pensamento (há muitos outros pensamentos não seguidos, por exemplo, e por isso mesmo adormecidos). E posso inclusive dizer-te que ele não é real – é pura e tão-somente uma representação do real no campo da irrealidade presente em tua memória inestética. Concordas comigo? Ou não? Se não concordas, por quê então acreditas que Nietsche inferiu que Deus está morto? Acreditas que Deus está morto? Mas, se concordas comigo, então, quem está morto és tu. Concordas? Assim sendo tu não existes. Tu não és real. Correto? Bem te avisei: já não mais tens o direito de deixar de me acompanhar neste relato, pois dele tu serás discípulo e apóstolo – já te enfiastes até o pescoço, faltando, apenas, dar-me a tua cabeça para pensá-la comigo. Ou então serás, apenas, túmulo e morte. Concordas? Duvidas? Mas com o que exatamente concordas? E do que estás a discordar? [...] Ah, estás pensando no Deus que Nietzsche disse está morto... “Quem matou Deus?” – É este o teu pensamento agora? Para resolver esta tua curiosidade tu precisas, primeiramente, resolver a questão anterior à morte de Deus. Proponho-te a seguir que te faças uma pergunta: quando Deus nasceu? De quem ele nasceu? Onde Deus nasceu? Não vale responder com dogmatismos religiosos. Isso é senso comum. E o senso comum é o não-pensamento. Esta resposta merece o teu pensamento, portanto, pergunto-te: o que pensas aqui e agora? Veja bem: aqui e agora, neste instante... O que pensas? [...] Pronto, dei-te a ti e ao teu pensamento os tempos necessários. Digo-te, agora, o seguinte: toma-a (a resposta) e guarda-a bem dentro do teu pensamento. Mas antes precisas responder se o pensamento existe, como te propus lá atrás... Nunca esqueças disso. Uma coisa tem a ver com a outra. Todas se interpenetram. Ah, mais uma coisa: foge imediatamente dessa tua dualidade. A dualidade é uma falsa representação da realidade. A dualidade não é Realismo. Pensar pela ótica da dualidade implica reduzir a vida simplesmente à causa e efeito. E a vida não é só isso: causa “versus” efeito. Ou é? Mas, se não é, então, o que é a vida? E se ela é, então, o que ela é? O que diz o teu pensamento a este respeito? Dá-me, a mim, aqui e agora, o teu pensamento para junto pensarmos. Pensemos: se a vida não é, o Homem não é. Deus não é. O Ser não É... Mas a vida sendo o homem não é, Deus não é, e o Ser não É. Assim não sendo tudo é representação. Concordas? Não concordas? Então toma este poema e pensa-o:
Descaminho
Há uma pedra no caminho;
no caminho há um homem.
Há um homem no caminho;
no caminho há uma pedra.
Há um caminho sem uma pedra;
no caminho não há um homem.
Há um caminho sem um homem;
no caminho não há uma pedra.
Há uma pedra livre porque o caminho está livre do homem.
Há um homem livre porque o caminho está livre da pedra.
Há um caminho livre porque o caminho está sem uma pedra.
Há um caminho livre porque o caminho está sem um homem.
[...]
Há um caminho livre por quê não há nem homem, nem pedra!
E agora, que me dizes tu? Qual caminho tu tomará como teu? O caminho livre do homem? O caminho livre da pedra? Ou o caminho (simplesmente) livre – sem nem um homem, sem nem uma pedra? Mas a todas estas questões quero inserir mais uma: - Qual caminho tomou Nietzsche quando inferiu a morte de Deus? Qual a realidade de Deus, em que Realismo Deus existe? Ou Deus é só Romantismo? E mais uma pergunta: - Por quê inferir apenas a morte de Deus? E o Diabo?... Existe? Continua vivo? Ou também foi morto? Por quem? E se ambos existem – ou existiram –, quais caminhos tomaram como seus? Vê o que nos diz o poeta:
A Maçã do Éden
o cadáver da vida
floresceu entre os parreirais
o diabo lho fizera prece
deus e o diabo beberam
do mesmo vinho dionisíaco
hoje apolínicos em suas dimensões
ambos reclamam Adão e Eva
E aí, que me respondes tu, diante dessa celeuma que deblatera dentro do teu espírito? Êpa... mas que é isto, o Espírito? De que matéria constitui-se o Espírito? Quem te deu esse espírito? Se o tens, o que és então: matéria ou espírito? E se te condensas nos dois, quem é o desencadeador da Razão? E a Razão o que é senão a realidade da matéria? Se a Razão é, pois, a realidade da matéria, o espírito não tem razão de Ser? Concordas? [...] Ah, resolvestes dar o ar da graça... Discordas do meu pensamento. Então discutamos o teu pensamento. Presumes que o Espírito é Deus. Correto? Pois bem... Se o espírito é Deus, tu és Deus. Concordas? Ah, não concordas! Neste caso nem tu, nem Deus, existem. Concordas comigo que tu não É, assim como Deus não É? Discordas. “Deus é o Princípio e o Fim” – dizes-me tu. Consideras um Fim em Deus, então, dás razão a Nietzsche... – “Deus está morto”. Neste caso, assim como Nietzsche, tu aceitas como Verdade a preexistência de Deus... Correto? Ah, Deus está fora de si? Onde? [...] Bem sei estás cansado e eu também, contudo, vejamos até onde chegamos: à Verdade. Tomas o meu pensamento por Verdade? Se assim o consideras, elejo-te, então, meu discípulo e apóstolo. Se não me tomas por verdadeiro, então qual é a tua verdade? Qual caminho tu seguirás após nossa conversa? Qual pensamento será o teu desencadeador de agora por diante? Terás um pensamento próprio, ou continuarás refém de outros pensamentos?
[...]
Ah, ia me esquecendo: no dia do enterro de Nietzsche postei-me ao lado esquerdo do caixão. Era madrugada. Entre 2 e 3 horas. Somente eu estava ao lado do caixão. Ele olhou-me. Sorriu faceirosamente. Com um estupendo gozo eterno e me confidenciou:
- Vocês são todos loucos, mas dou-te, somente a ti, meu caro Atsitabj Ogal, este meu testamento: não fui eu quem matou Deus... (cochichando) ...nem sei se Deus morreu... (piscou o olho para mim e acenando com a cabeça pediu que eu chegasse mais perto) ...foi a humanidade... o homem... o humano... foram as religiões que mataram Deus. Ah, quanto ao Diabo, nem se preocupem, ele não fará tanto mal assim como pregam por aí... Será que me compreenderam? Dionísio contra o crucificado? (depois desta frase desfaleceu).
[...]
Depois do enterro, no dia seguinte, Lou Salomé, que tomava café ao meu lado, confidenciou:
- Nietzsche queria ser Deus...