sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O Espírito [© DE João Batista do Lago]

O espírito

 

(para Marconi Caldas, Mário Lincoln e Hélcio Silva)

 

© DE João Batista do Lago

 

Ele já tinha sentido muitas coisas!

Tantas e quantas que jamais imaginamos.

Nada o fizera fugir das suas convicções:

elas tinham o cheiro da sua pele,

a tessitura das suas carnes,

os olhares da sua visão,

o verbo das suas orações...

e ouvia como um confessor

o lamento ensurdecedor das ruas da cidade.

 

Viajor de todas as artérias,

de todas as veias,

sentia o fremir dos sangues ebuliços

das almas cansadas e amargas,

que perambulavam entre dias e noites

nos cemitérios profundos de cada ser,

imerso e solitário, ambulante da cidade

condenada ao amante dos ódios,

e guardada no silêncio dum inferno profundo.

 

Observatório das vidas e das cidades

ia esgrimindo como spadaccino valente

- inda que sujeito ao golpe fatal -,

golpes certeiros nos corações

das víboras humanas, que rastejam qual serpente,

para furtar o ovo da desesperada esperança

que se lança como alimento aos porões dos injustos,

imortais duma pajelança múndica de bestiais humanos,

com seus caninos à mostra: defensa dos ignorantes.

 

Indomável e crente da sua labuta

seguia navegando o rio caudaloso do humano.

Invencível ao odor do escárnio e do amor-flagelo

guiava o barco-flagelado entre os açoites

dos chicotes de dias e noites de infernos ancestrais,

que fremiam nos umbrais dos mortais,

carniceiros de-si, em suas peles de pérolas e cristais,

máscaras de corpos pútridos sob os vestais

da branca paz, incapaz do beijo na face que não seja falso.

 

Nenhum ventre se lho era estranho.

Os conhecia a todos: desde os estéreis aos mais férteis.

E mesmo triste ao prenúncio dos proscritos,

os vigiavam, desde os presépios encarcerados

em-si e já desterrados desde os ancestros da vida.

Pretendera por toda eternidade a salvação

dessa conspurcação gerida,

do futuro pré-verbo que receberia da terra,

sob as luzes da escuridão, toda guarida.

 

Ainda que sob o pranto de lágrimas de fogo

desfilando sua dor por entre ruas, becos e sarjetas;

ainda que se sabendo mutilado pela incompreensão

pensava atingir as profundezas dos corações,

e saia, a cada novo dia, do lodaçal do humano cada vez mais

consciente de sua celestial condenação:

- "minha espada há-de ferir de morte a corrupção,

nenhum mortal merece tão miserável condenação”.

Ele já tinha sentido todas as coisas!