O espírito
(para Marconi Caldas, Mário Lincoln e Hélcio Silva)
© DE João Batista do Lago
Ele já tinha sentido muitas coisas!
Tantas e quantas que jamais imaginamos.
Nada o fizera fugir das suas convicções:
elas tinham o cheiro da sua pele,
a tessitura das suas carnes,
os olhares da sua visão,
o verbo das suas orações...
e ouvia como um confessor
o lamento ensurdecedor das ruas da cidade.
Viajor de todas as artérias,
de todas as veias,
sentia o fremir dos sangues ebuliços
das almas cansadas e amargas,
que perambulavam entre dias e noites
nos cemitérios profundos de cada ser,
imerso e solitário, ambulante da cidade
condenada ao amante dos ódios,
e guardada no silêncio dum inferno profundo.
Observatório das vidas e das cidades
ia esgrimindo como spadaccino valente
- inda que sujeito ao golpe fatal -,
golpes certeiros nos corações
das víboras humanas, que rastejam qual serpente,
para furtar o ovo da desesperada esperança
que se lança como alimento aos porões dos injustos,
imortais duma pajelança múndica de bestiais humanos,
com seus caninos à mostra: defensa dos ignorantes.
Indomável e crente da sua labuta
seguia navegando o rio caudaloso do humano.
Invencível ao odor do escárnio e do amor-flagelo
guiava o barco-flagelado entre os açoites
dos chicotes de dias e noites de infernos ancestrais,
que fremiam nos umbrais dos mortais,
carniceiros de-si, em suas peles de pérolas e cristais,
máscaras de corpos pútridos sob os vestais
da branca paz, incapaz do beijo na face que não seja falso.
Nenhum ventre se lho era estranho.
Os conhecia a todos: desde os estéreis aos mais férteis.
E mesmo triste ao prenúncio dos proscritos,
os vigiavam, desde os presépios encarcerados
em-si e já desterrados desde os ancestros da vida.
Pretendera por toda eternidade a salvação
dessa conspurcação gerida,
do futuro pré-verbo que receberia da terra,
sob as luzes da escuridão, toda guarida.
Ainda que sob o pranto de lágrimas de fogo
desfilando sua dor por entre ruas, becos e sarjetas;
ainda que se sabendo mutilado pela incompreensão
pensava atingir as profundezas dos corações,
e saia, a cada novo dia, do lodaçal do humano cada vez mais
consciente de sua celestial condenação:
- "minha espada há-de ferir de morte a corrupção,
nenhum mortal merece tão miserável condenação”.
Ele já tinha sentido todas as coisas!