sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Carta ao poeta Tonicato Miranda


Curitiba (PR), sexta-feira, 22 de agosto de 2008





Prezado Tonicato Miranda

Bem sejas.





Caríssimo poeta.



O “devaneio” diurno – aos meus olhos – tem maior significado que os “sonhos” noturnos. Mas, antes de tudo, infiro que este “campo” de devaneio ou do sonho pode ocorrer na sua metástase inversa. E ninguém melhor que os poetas para “si” nos dizerem destes fenômenos. E como sabem, muito bem, diferenciá-los os poetas sem que, para isso, façam qualquer tratado (ou mesmo teoria) psicológico ou psicanalítico!


Tenho em conta que, por isto mesmo, os poetas, transcendem os filósofos e os psicólogos. O poeta toma a natureza bruta do fenômeno e constrói, num verso ou numa poesia, toda a história do humano.


E é esta práxis que transforma o poeta num fenomenólogo, pois sabe o poeta, pela “intuição do instante – (G. Bachelard)”, que é preciso lutar contra a predisposição que leva a considerar os resultados dos processos perceptivos como descrições objetivas do mundo e os conteúdos ordinários da mente como verdades obvias.


Ao contrário – ensina-nos Edmund Husserl – é preciso assumir atitude fenomenológica, desinibida, desinteressada e crítica em relação aos hábitos mentais do próprio sujeito.


O texto escrito acima, caro poeta, decorre de posterior “leitura” de “uma” sua poesia publicada em PALAVRAS, TODAS PALAVRAS1.


E que bela poesia!


E que intuição do instante brutalmente fenomênica!


Cresci aprendendo e apreendendo que nos menores frascos encontram-se os melhores perfumes. E, permita-me a analogia, pois, em LUZES DA TARDE2 encontramos um frasco de perfume poético capaz de tornar o mundo mais cheiroso. Um frasco de perfume poético que estava (e é) guardado no “cofre” que “reside” no solar da casa-corpo! Perfume poético, que de tão estonteante fez abrir o guarda-roupa, não para perfumar uma roupa qualquer, não para perfumar uma roupa que “veste o ego”, mas para de lá arrancar num final de tarde deste agosto um corpo - “o corpo-casa” - que lá estava guardado e estendido num cabide, como se fora um corpo-smoking velho e surrado e apertado simetricamente verticalizado entre tantos outros black-tie (já) quase sufocados pela falta de oxigenação.


E quanta e tanta dialética da estética num dia de agosto, há “antes que a tarde acabe”!


O “sujeito” que fala em LUZES DA TARDE briga autocriticamente ou ao autocriticar-se com o real e a realidade implícita em si: “dúvida que de mim duvida/mais um desenho a fazer/ou num poema me fazer”.


Permita-me, poeta amigo, extrair destes versos, imagens (ou desenhos) agora puramente minhas. E começo a construção dessas imagens por uma pergunta que se me ocorre nesta minha intuição do instante: o que há ou melhor, noutras palavras, o que houve, o que de fato ocorrera “antes que a tarde acabe”?


Ocorre-me a seguinte ilação: eis aqui a questão central; eis aqui a chave do corpo-casa (armário de sentidos). Eis a chave que abre e que revela “o espírito obrando sua casa”; eis a chave que revela o corpo-casa fazendo uma tipologia fenomênica de metempsicose: “olho à janela e vejo a luz”.


Ao se colocar na primeira pessoa do verbo, o “sujeito” que fala na poesia transmuda-se; já não é mais o espírito do corpo-casa, mas a casa-humana, a casa-em-si, a casa-mesma, o ente, o ser, o poeta, o “sujeito” que faz e dá sentido à sua mundanidade!


E é assim, e somente assim, que, aqui e agora, o “sujeito” (já) posto em toda sua mundanidade, consegue “dialetizar” o fenômeno de “sentir” e de ter a “sensação” do “ar parado/o calor manso desta tarde”.


Quanta “intimidade” há no desvelo deste armário-casa!


E, se me permita, ainda, caro poeta, mais esta ilação imagética: se tomarmos a palavra armário como “um” centro de intimidade da casa-corpo ocorre-nos imaginar o devaneio (imagem) que esta palavra se nos provoca!


A primeira sílaba desta palavra - “ar” - desvela o caráter do ar que sufocava o “corpo-smoking velho e surrado e apertado simetricamente verticalizado entre tantos outros black-tie (já) quase sufocados pela falta de oxigenação”, que mencionei lá atrás.


E na mesma dimensão da imensidão desse espaço de intimidade, a última sílaba - “rio” - finda a palavra num outro fenômeno: o rio.


Porventura não é um rio, isto é, suas águas, um estádio perene de movimentos constantes e inacabáveis?


É claro que sim!


Então o que isso quer-nos dizer?


Aos meus olhos, esta imagem agora revelada significa que o “ar parado/no calor manso desta tarde” é o ponto de libertação da “dúvida que de mim duvida”, ou seja, é melhor que o ar fechado, preso, inerte e sufocante da casa-corpo (armário).


Mas a imagem desse movimento vai mais além! E se completa totalmente quando o “sujeito” que fala na poesia infere que, neste final de tarde de um dia de agosto há “borboletas belas na tarde”.


Que imagem fantasticamente fenomenal!


As borboletas são as rainhas do movimento! São incansáveis nas suas formas de movimento! São insuperáveis nos jogos dialéticos do movimento!


Não é, pois, à toa que o “sujeito” que fala na poesia, depois de extasiar-se com a intuição deste seu instante fenomenal, resolveu, enfim, declarar-se definitivamente separado do seu paradigma de racionalismo idealista para assumir, por definitivo, sua condição de “sujeito” mundano-existencialista, e nesse sobrevôo vestir a roupa mais simples, porém, a mais perfumada; perfumada com o perfume de um existencialismo concreto, onde dúvidas, egos, vontades, desejos, hábitos, crenças, fé, religião, pré-juízos, juízos, pré-conceitos, conceitos... fiquem todos entre parênteses: “a vontade de desenhar [geometria do racional] perdeu/para a vontade do poema [geometria do devaneio]”.


E de posse dessa “epoché fenomenológica – (E. Husserl)” renascer do “rio” de uma armário velho, para navegar na correnteza do “rio” prenhe de movimentos em direção ao “mar” (que também reside na palavra armário) de conhecimentos plenos: “foi bom não perder a tarde/farei desenhos mais tarde”.


Foi assim, meu caro poeta, que sua poesia veio residir em mim.


Evidentemente não sou nenhum psicólogo, não sou nenhum psicanalista, não sou nenhum crítico literário. Possivelmente nenhum destes concordem com as minhas palavras (e provavelmente não concordarão!) sobre a sua poesia, que até poderá ser vista por eles como meras palavras ou como uma poesia banal, de palavras banais; ou mesmo como um grande texto, uma poesia excepcional, de significados e significantes meta-existenciais, corolário de patologias sexuais ou de estados de mentes esquizofrênicas, donde – eles – possam extrair um não “sei quê!” de excentricidade para justificar suas rabugices ou suas regurgitações acadêmicas.


Quanto a mim, caro poeta, é preciso que o diga, elas vêem consolidar imagens mentais que povoam a consciência dum poeta que crê na fenomenologia do instante, no brutal instante em que surge: avassalador, incorrigível, irracional, animal, feroz, deblaterador... enfim, visceralista, donde sua única forma é a forma que chega no seu formato fenomenológico... gestáltico... ou mesmo louco... ou mesmo patológico...


Peço-te, meu caro poeta, mil perdões pela subversão que pratiquei no teu texto.


Ao encerrar esta missiva, peço-te mais perdão pela indiscrição de dar publicidade em alguns espaços que mantenho na globosfera.


Atenciosamente


João Batista do Lago

http://joaopoetadobrasil.wordpress.com

http://joaobatistalago.multiply.com

http://batistadolago.blogspot.com


2LUZES DA TARDE poema de tonicato miranda

Agosto 21, 2008 14:40 pm de Equipe Palavreiros da Hora

                                                                                                                              para os palavreiros

 

antes que a tarde acabe

dúvida que de mim duvida

mais um desenho a fazer

ou num poema me fazer

não falo de fazer como quem

veste o ego ou uma roupa

mas de fazer o corpo-casa

o espírito obrando sua casa

olho à janela e vejo a luz

apraz-me este ar parado

o calor manso desta tarde

borboletas belas na tarde

a vontade de desenhar perdeu

para a vontade do poema

foi bom não perder a tarde

farei desenhos mais tarde


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